Uma das identidades que mais cultivo é a de tia. Tenho estado para quase todos eles, desde para sair para tomar sorvete escondido, servir de modelo para maquiagens coloridas e, principalmente, para tirar dúvidas sobre como funciona a universidade, o mercado de trabalho e, agora, o imposto de renda.
Em 2022, caí em mais uma dessas conversas sobre o que ser quando crescer, ainda que eu mesma não tenha a resposta. Entre escuta atenta e várias possibilidades, sugeri que meu sobrinho prestasse vestibular na UFSC e, caso passasse, poderia passar um tempo no quarto que estava sem uso. E assim aconteceu.
Morar com um adolescente é desafiador de uma forma que jamais imaginaria. Sempre fui a tia legal e nem todas às vezes que as crianças choravam eu passava para a mãe ou para o pai, mas sim, sempre teve aquele momento de ruptura quando eu ia para casa ou quando o pai ou a mãe passavam para buscar.
E Ronald se virou super bem, se adaptou à vida de república, articulou bolsas e tem mantido o seu índice de aproveitamento dentro do que sugeri para ele que era o ideal. Inclusive, minha psicóloga outro dia me disse: cuidado para não virar mentora de carreira dos seus sobrinhos. Mas esse é um dos pesos de ser referência, não é mesmo?
Um final de semana desses, o convidei para um café cheio de doces e cafés açucarados. Nós dois na correria, fazia um bom tempo que não nos víamos para nos atualizar das nossas vidas, ainda que a gente more a 10 minutinhos de carro um do outro. Falamos sobre as disciplinas (que sempre acho muitas), sobre o trabalho, sobre planos e sobre os rumos que a Awalé tem tomado.
Entramos também em assuntos que famílias não gostam muito de conversar, mas sigo com o papel de falar sobre quase tudo. Abri um pouco da minha caixa preta de tia que mora longe e devolvi com pergunta retórica: você não sabe metade das coisas que aconteceram na minha vida, mas você sabe de cada uma das boas que aconteceram e que me fizeram chegar até aqui. No fim, é sobre o que você vai fazer com as coisas que fizeram com você.
Mas você já passou por tanta coisa, como consegue?
Não sei se é algo comum de se ouvir quando você passa dos 40 anos. No meu caso, acredito que tem um bom viés da minha interseccionalidade de ser uma mulher amazônida, periférica, que fez transição de carreira e migrou para o sul um pouco antes dos 30 anos.
Do lugar de onde vim, não é esperado muito da gente e ainda que existam feridas que a gente trata na terapia, em algum momento da minha jornada, eu decidi que não ia deixar que o medo, a falta de perspectivas e problemas sistêmicos me paralisassem. Eu segui, eu cai, eu levei um coice quando ainda levantada, mas em todos os momentos de encruzilhada, decidi seguir em frente porque seguir em frente era o que haviam me ensinado a fazer.
E não quero cair em positividade tóxica, não é sobre isso, eu quero inclusive pedir licença para citar Sartre: “não importa o que fizeram de mim, o que importa é o que eu faço com o que fizeram de mim.”
Quero devolver a pergunta retórica.
O que você fez com o que fizeram de você?
Desde cedo, somos moldados por uma série de experiências, valores e circunstâncias que, muitas vezes, fogem ao nosso controle. A sociedade nos forma, nos impõe rótulos e nos submete a normas que podem limitar ou potencializar nossa trajetória. Mas a grande questão filosófica que emerge é: até que ponto nos tornamos meros produtos dessas influências? E, mais importante, como podemos transcender as marcas do passado e assumir as rédeas de nossas próprias vidas?
E quando colocamos um recorte de gênero, classe e raça os paradigmas vão para muitos outros lugares. Estou lendo o livro Autocuidado de verdade: um programa transformador para redefinir o bem-estar de Pooja Lakshmin e tenho levado um “poft” atrás do outro, porque Lakshmin fala em alguns capítulos que a questão da mulher na sociedade é sistemáticas, que é um jogo de cartas marcadas que nós como mães, irmãs, tias, profissionais estamos sempre sufocadas pelo peso de nossas responsabilidades e tendemos a investir no falso autocuidado como fuga, ainda que breve, dos sistemas que nos oprime.
Mas ali, na volta da massagem, do retiro espiritual, do banho de ervas e inalação de infinitos óleos essenciais, está ali a nossa vida, nua e crua, esperando que a gente tome as rédeas da situação?
Lakshmin fala sobre o impacto das pressões sistêmicas e como, muitas vezes, as mulheres se veem presas em expectativas irreais — de produtividade, beleza e sucesso — que não têm relação com suas necessidades emocionais e físicas. A perspectiva feminina sobre essa pergunta revela que “fazer algo do que fizeram de você” envolve rejeitar essas narrativas superficiais e buscar um cuidado verdadeiro que seja sustentável e transformador. Isso implica em priorizar suas próprias necessidades de maneira autêntica, em vez de se conformar às demandas que a sociedade impõe.
Assim, a resposta à pergunta também passa por reconhecer a importância de se afastar de expectativas externas e ressignificar o autocuidado como um ato de resistência contra o que o sistema espera das mulheres. Fazemos algo do que fizeram de nós ao nos reconectar com o que é genuinamente importante para nosso bem-estar e ao utilizar o autocuidado como uma prática revolucionária, que combate a exaustão, o perfeccionismo e a autoexploração.
Lakshmin é psiquiatra e traz muitos relatos de pacientes negras nas quais me conectei em nossa Dororidade. Ainda assim, quero trazer a frase de Audre Lorde que a autora repete mais de uma vez em seu livro: “Cuidar de mim mesma não é autoindulgência. É autopreservação, um ato de luta política”.
E se a gente se tornasse protagonista, seria sobre ser ou sobre estar?
Nascemos em um mundo que já tem expectativas sobre quem devemos ser. Se você descorda, deveria trabalhar como caixa de supermercado pelo menos um dia da sua vida. Boa parte da clientela acredita que as pessoas que estão nessas posições não se esforçaram o suficiente e acabaram nos ditos sub-emprego, essa percepção pode variar para muito pior, dependendo da localização do supermercado. Seria capaz de escrever uma crônica por dia sobre os seis meses que trabalhei em um supermercado em uma área nobre de Florianópolis.
Afinal, o lugar onde crescemos, a cor de nossa pele, nosso gênero e até nossas possibilidades financeiras são fatores que parecem definir, desde cedo, os caminhos que seguiremos. Neste contexto, a pergunta “o que fizeram de você?” parece inevitável. Será que somos mesmo o produto do ambiente que nos cerca? Da educação que recebemos? Das oportunidades que nos foram negadas ou concedidas?
Não quero falar sobre herdeiros, mas, se olharmos mais de perto, essa ideia de destino inevitável pode ser desafiada. Eu desafiei e cada dia na comunidade Awalé conheço alguém, ou motivo alguém a desafiar.
bell hooks, ao discutir questões de opressão e liberdade, nos lembra que o papel da sociedade não é estático. As estruturas podem limitar, mas também podem ser reconstruídas, e é nessa reconstrução que encontramos a chave para transformar o que nos foi imposto.
E por falar de subversão do papel social, quero quebrar padrões de violência
Muitas pessoas passam a vida repetindo padrões que lhes foram impostos. Não é incomum ver indivíduos conformando-se ao que a sociedade espera deles, internalizando o que foi ensinado sem questionar. Mas e quando nos perguntamos: “O que você fez com o que fizeram de você?” Essa indagação provoca uma resposta ativa e consciente. Ela nos tira do lugar de meras vítimas do destino e nos coloca como agentes de nossa própria história.
Essa transformação exige coragem. Questionar as estruturas que nos moldam implica um enfrentamento profundo do que nos limita. Para Sartre, a essência do ser humano é sua liberdade de escolha. Não escolhemos onde ou como nascemos, mas escolhemos como respondemos a essas condições. Para bell hooks, esse ato de escolher é um caminho de resistência, onde transformar o que nos foi dado em algo novo é, por si só, um ato de liberdade.
No entanto, para pessoas racializadas e periféricas, é preciso mais do que coragem. É preciso oportunidades concretas de acessar novos horizontes. Essas transformações só se tornam possíveis quando é permitido o acesso a outras formas de ver a vida, de estar no mundo, de ocupar espaços antes negados. Isso significa entender que a vida não pode ser reduzida à luta constante para prover a família, mas deve incluir também o direito de sonhar, de crescer, de se desenvolver em todos os sentidos.
Oportunidade, nesse contexto, é também a chance de se libertar das expectativas sociais limitantes e de descobrir que existem outros caminhos além do trabalho árduo que sustenta apenas a sobrevivência. É a chance de acessar educação, cultura, e formas de autocuidado que ampliem as possibilidades de uma vida plena. E é nessa ampliação que está a verdadeira transformação.
Eu quero te trazer para o agora: o que você está fazendo com o que fizeram de você hoje?
A pergunta central desse texto não se trata apenas do passado, mas também do presente e do futuro. O que você está fazendo com o que fizeram de você agora? Em tempos de mudanças rápidas e profundas, a reflexão sobre o que somos e o que podemos ser ganha ainda mais relevância.
Há liberdade em responder a essa questão. É sobre dar um passo adiante, sobre subverter as expectativas, criar novas possibilidades e, acima de tudo, assumir o papel de protagonista da própria história. O que fizeram de você pode ter te moldado, mas o que você faz com isso define quem você realmente é.
Vamos ampliar esta conversa nos comentários?
Mas antes de ir, aqueles 5 centavinhos de prosa porque sou aquele emaranhado de referências
Coletividade como ferramenta de resistência e crescimento
bell hooks fala muito sobre o papel da comunidade como um espaço de cura e empoderamento. Para recalcular nossas rotas e traçar novos caminhos, é fundamental que não façamos isso sozinhos. O conceito de “belonging”, do português pertencimento (e também meu livro preferido da autora) que bell explora é sobre se sentir parte de algo maior, um espaço onde nossas dores são reconhecidas, mas onde também encontramos força para imaginar e construir um futuro diferente.
Quando estamos inseridos em uma comunidade que nos apoia, há espaço para ressignificar o que foi feito de nós. Através da troca com outras pessoas que compartilham experiências e lutas semelhantes, podemos não apenas nos ver refletidos nos outros, mas também aprender a construir novas narrativas. A comunidade, nesse sentido, é onde as pessoas encontram apoio emocional e intelectual para recalcular suas rotas, seja pela partilha de conhecimentos, seja pela criação de novos sistemas de apoio.
Pausa para o suspiro porque a comunidade Awalé é isso e para todas as mulheres que interagem em nossos canais de comunicação com mais frequência <3
Educação como ato de liberdade
hooks enfatiza a educação como um ato de libertação, um processo contínuo de transformação que permite que as pessoas se tornem conscientes das opressões que enfrentam, ao mesmo tempo que se equipam com as ferramentas para superar essas limitações. Recalcular a rota, neste contexto, é uma questão de permitir que o conhecimento — especialmente o compartilhado em comunidade — atue como um guia para novas direções.
Ela nos lembra que a educação não deve ser apenas uma aquisição de informações, mas uma prática de liberdade. Ao buscar conhecimento, nós nos libertamos das expectativas limitantes que a sociedade nos impôs, criando a possibilidade de novos trajetos, novos horizontes e novos modos de existência. A educação, seja em espaços formais ou informais, é um motor que nos impulsiona para a mudança.
Recalculando a rota através da subversão
Subverter os papéis tradicionais e as normas sociais é uma forma potente (e guiada por nossa ancestralidade) de traçar novos caminhos. Esse recalcular de rotas envolve desafiar as expectativas do que podemos ser, particularmente para aqueles que têm suas identidades moldadas por estereótipos. Isso é especialmente relevante quando falamos de mulheres negras e indígenas, cujas trajetórias muitas vezes foram limitadas pelas opressões estruturais do racismo e do patriarcado.
Ao olhar para a comunidade como um espaço de apoio e transformação, vemos que recalcular a rota não é apenas individual, mas um ato coletivo de resistência. É nesse espaço coletivo que nos fortalecemos, que a nossa trajetória pessoal se conecta com a luta maior pela justiça social.
O poder da Imaginação coletiva, com a palavra a comunidade
hooks também fala sobre o poder da imaginação coletiva, sobre como podemos, juntos, imaginar e criar novos mundos, novas possibilidades. Traçar novos caminhos não é apenas sobre o que já existe; é sobre ousar imaginar o que ainda não foi feito. Em uma comunidade, a imaginação se torna um ato político, um instrumento de sobrevivência e criação. Todas as pessoas juntas, podem questionar o status quo e pensar em novos modelos de viver, trabalhar, amar e pertencer.
Ela sugere que a imaginação coletiva é o que permite o surgimento de novos caminhos, não só para o indivíduo, mas para todos que compartilham dessa experiência de estar à margem. Assim, recalcular rotas é um ato revolucionário que se torna possível pela força da comunidade que tece sonhos coletivos e os transforma em realidade.
Afeto e empatia como combustível para novas trajetórias
Finalmente, recalcular a rota exige afeto, e bell hooks destaca como o amor e a empatia são fundamentais para qualquer processo de transformação pessoal ou coletiva. Quando recalculamos nossa trajetória, precisamos não apenas de apoio intelectual ou prático, mas de afeto e empatia. O amor comunitário pode ser a âncora para que tenhamos coragem de nos reinventar, e a comunidade oferece um espaço onde esse amor pode florescer.
Recalcular a rota, então, é um processo que envolve não só a reconfiguração de objetivos e ações, mas a possibilidade de fazer isso com o suporte amoroso de uma rede que valoriza sua individualidade e, ao mesmo tempo, se fortalece na coletividade.
Eu, Rosângela Menezes, acredito no poder do aprendizado em comunidade para desenhar novos futuros
Seguindo as ideias de bell hooks, recalcular a rota é um processo coletivo, alimentado por comunidade, educação, subversão e afeto. Não se trata apenas de ajustar o curso de uma vida individual, mas de encontrar na coletividade o poder de imaginar e construir novos horizontes.
Assim, ao recalcular nossas rotas, criamos novas possibilidades para nós e para aqueles que caminham conosco, desafiando as limitações impostas e construindo um futuro mais justo e inclusivo.
Seja o que tenham feito de você, podemos transformar novos futuros a partir do coletivo, sem perder de vista a individualidade. Vamos juntas, juntos, juntes?
Rosângela Menezes é fundadora da Awalé, corredora nas horas quase vagas e apaixonada por discos e livros. É formada em Física e Jornalismo e trabalha com o melhor dos dois mundos.